Estaremos seguindo o caminho oposto ao que foi adotado em outros países que conseguiram realizar a abertura do seu mercado de gás natural, questiona José Roberto Faveret
Por EPBR
A Petrobras divulgou recentemente que requereu ao Cade a renegociação do Termo de Cessação de Conduta (TCC). Como se sabe, o TCC estabeleceu uma série de obrigações para a Petrobras com o objetivo de aumentar a concorrência no mercado de gás natural brasileiro. Talvez tenha sido uma das medidas mais eficazes nesse sentido.
Pelo que se pode depreender do requerimento apresentado pela Petrobras ao Cade, um dos motivos seria a necessidade de ampliar a infraestrutura para viabilizar o aumento da oferta de gás natural pela Petrobras.
Essa notícia traz uma informação positiva que é a perspectiva de aumento da oferta de gás natural produzido no Brasil. Mas também nos leva a uma reflexão sobre o futuro da abertura do nosso mercado de gás natural que, embora de forma lenta e gradual, vem de fato acontecendo com efeitos muito positivos.
Fazendo uma breve retrospectiva devemos nos lembrar que, se de um lado a abertura do setor de petróleo e gás natural no Brasil foi um sucesso que atraiu rapidamente dezenas de novos investidores para a exploração e produção desse recurso, o mesmo sucesso não se verificou no mercado de comercialização de gás natural.
Embora o monopólio legal tenha deixado de existir, só mais recentemente foram adotadas medidas efetivas para a quebra do monopólio da Petrobras no mercado de gás natural.
Verdade seja dita, sempre houve uma enorme complacência com o monopólio da Petrobras no mercado de gás natural. Para muitos era quase que uma impossibilidade de conduta diversa.
O mercado de gás natural envolve o uso de uma infraestrutura cujo funcionamento é complexo. Do campo produtor até a unidade consumidora existe uma complicada engrenagem que precisa ser operada de forma coordenada (campos de produção, gasodutos de escoamento, unidades de processamento, gasodutos de transporte e gasodutos de distribuição).
Operação essa ainda mais complexa quando se trata de gás natural associado. Não existe flexibilidade no escoamento do gás natural associado porque a sua produção afeta a do petróleo. Dessa forma, facilita coordenar todas essas atividades quando estão concentradas em um único agente.
O setor elétrico também foi um dia assim. Contudo, aos poucos privatizações de empresas estatais, combinadas com importantes reformas do marco legal, foram implementadas de forma bem-sucedida e hoje temos um mercado aberto e dinâmico, com uma grande diversidade de agentes.
Ainda que se possa criticar o preço da energia elétrica no Brasil por diversos motivos que não vem agora ao caso discutir, provavelmente a nossa situação seria muito pior se não tivesse ocorrido a abertura do mercado.
Desnecessário dizer que, na maioria dos casos, descobrir gás natural no Brasil não era motivo de satisfação para investidores privados. O preço pago pela Petrobras pelo gás natural produzido por terceiros era frequentemente muito baixo (sem que esse benefício fosse necessariamente repassado ao mercado).
Os demais produtores praticamente não tinham poder de barganha para negociar preços melhores. Em que pese grandes frustrações, havia um certo conformismo. Seria mais um custo de se fazer negócios no Brasil. Certamente essa situação nunca foi positiva, embora subestimada por muito tempo.
De todo modo, mais recentemente a sociedade brasileira parece ter concluído que embora o monopólio da Petrobras no mercado de gás natural possa ter sido útil para deslanchar essa indústria no Brasil, havia chegado a hora de efetivamente facilitar a entrada de novos agentes nesse mercado.
Isso fomentaria a concorrência e geraria a formação de preços mais justos, provavelmente mais baixos, o que favoreceria a sociedade pelos mais diversos ângulos (redução do custo de produção e, logo, da inflação).
De tabela também atrairia mais investimento para o aumento da oferta, ampliação da infraestrutura e expansão do parque industrial.
Intensos estudos foram coordenados pelo Governo Federal para diagnosticar os obstáculos ao ingresso de novos agentes no mercado de gás natural brasileiro. Passamos a alimentar o sonho de no futuro próximo termos um mercado àa vista com razoável liquidez, como ocorre em países com uma indústria de gás natural desenvolvida.
Concluídos os diagnósticos, a sociedade brasileira se mobilizou para implementar as medidas necessárias para corrigir os problemas identificados. Os esforços foram hercúleos e admiráveis.
Depois de longos debates no Congresso Nacional, foi criada uma nova lei federal para o mercado de gás natural. A nova lei trouxe avanços importantes, notadamente no sentido de facilitar o desenvolvimento da concorrência nesse mercado.
Os estados fizeram mudanças nas suas legislações que tratam da distribuição de gás canalizado para introduzir o conceito de mercado livre. Ainda que alguns estados importantes tenham avançado pouco nessa direção, bem ou mal vem se aumentando a liberdade dos consumidores para a compra de gás natural dos mais diversos agentes, o que fomenta o desenvolvimento da concorrência.
Diversas mudanças na legislação do ICMS que criava (e ainda cria) várias dificuldades e ineficiências para operações com gás natural, também foram implementadas com o apoio dos estados.
Complexos contratos foram elaborados pela Petrobras para disciplinar o acesso de novos agentes aos gasodutos de escoamento e unidades de processamento de gás natural. Mudanças profundas foram feitas na forma de contratação do transporte em gasodutos.
A ANP está agora conduzindo uma intensa agenda de consultas públicas para rever a sua regulação à luz de todas as mudanças que estão ocorrendo no setor. Bem como para buscar soluções destinadas a aumentar a liquidez do mercado.
O fato é que todo esse esforço não foi em vão. Atualmente existe uma relevante quantidade de empresas comercializadoras de gás natural. Algumas sem produção própria, funcionando como típicas tradings. Diversas operações vêm sendo realizadas com preços abaixo dos praticados pela Petrobras.
Novas modalidades de negócios estão sendo concebidas. Grandes empresas mostram confiança em desenvolver novos campos de gás natural sem um consumidor âncora específico. Confiam nas regras do mercado brasileiro e que haverá demanda para compra de toda a produção e amortização dos investimentos.
Tudo isso é bom para a Petrobras também. O monopólio detido por empresa estatal acaba sendo uma tentação irresistível para medidas populistas que geram toda uma sorte de distorções no mercado, inibem investimentos por empresas privadas e acabam prejudicando a própria empresa estatal.
Políticas semelhantes adotadas aqui no passado e em alguns dos nossos países vizinhos revelam bem os males causados no longo prazo por esse tipo de situação.
Claro que ainda existem muitos problemas a serem resolvidos. Mas o fato de termos diversas empresas de comercialização de gás natural operando hoje no Brasil facilita identificar esses problemas e buscar soluções para resolvê-los. Por mais que o Brasil ainda tenha muito o que fazer para desenvolver esse mercado, não se pode deixar de reconhecer o avanço conseguido até aqui.
Da mesma forma, é necessário evitar que tenhamos retrocessos, os quais podem gerar danos irreparáveis para o desenvolvimento da indústria do gás natural no Brasil. E esse risco pode ser maior do que se imagina.
Em que pese todos os esforços do Governo Federal, para a perplexidade de muitos, boa parte do gás natural descoberto não está sendo ofertada ao mercado. Enormes quantidades de gás natural estão sendo reinjetadas nos reservatórios.
Existem justificativas razoáveis para a reinjeção. Em muitos casos ela acelera a produção e aumenta a recuperação do petróleo. Em outros, simplesmente existe uma inviabilidade técnica ou comercial na comercialização do gás natural. Seja por causa da elevada presença de contaminantes ou pela longa distância entre o local da produção e a costa.
Em alguns casos, porém, essas justificativas não são aplicáveis. Isso gera a percepção de que o Brasil pode estar desperdiçando uma grande oportunidade de usar as suas reservas de gás natural para a reindustrialização do país.
Não foi por outro motivo que uma das primeiras medidas anunciadas pelo novo governo no setor industrial foi o programa "Gás para Empregar". Estão sendo analisadas soluções para aumentar a oferta do gás natural produzido no país e gerar o tão desejado "choque de oferta". Espera-se que com esse choque o preço caia bastante, impulsionando a reindustrialização do país.
Nessas discussões, as notícias que saem na mídia revelam que a falta de infraestrutura para o escoamento do gás natural doméstico vem sendo apontada com bastante frequência como uma das principais causas dessa situação, muito embora haja quem diga que a causa verdadeira seria a baixa demanda por gás natural no Brasil.
Seja como for, é razoável que haja um enorme inconformismo com esse estado de coisas. Assim, não é muito difícil supor que, da mesma forma como ocorreu no passado, exista uma tentação de voltar a usar a Petrobras como âncora para a ampliação da infraestrutura e da oferta de gás natural.
A Petrobras tem uma capacidade de gerenciar o risco comercial do mercado de gás natural brasileiro muito superior ao das empresas privadas. Tanto pela sua participação no mercado, quanto pela sua relação umbilical com o Governo federal.
Foi com a ajuda da Petrobras que o Brasil viabilizou a construção do Gasoduto Bolívia Brasil e com a importação de gás natural da Bolívia dobrou a oferta de gás natural então existente.
Sem querer entrar no mérito sobre se essa ideia faz ou não sentido no momento atual, o fato é que ela suscita uma outra questão muito relevante. Como voltar a usar essa estratégia e, ao mesmo tempo, continuar a fomentar a entrada de novos agentes para aumentar a concorrência.
Novos agentes receiam investir em um mercado fortemente dominado por uma única empresa, especialmente quando se trata de empresa estatal. Se a Petrobras for usada como no passado, haverá um aumento da sua participação no mercado.
Entretanto, em outros países, em situações análogas, que saíram de um mercado de gás natural monopolizado para um mercado competitivo, uma das medidas adotadas foi exatamente a desconcentração da oferta. Ou seja, estaremos seguindo o caminho oposto ao que foi adotado em outros países que conseguiram realizar a abertura do seu mercado de gás natural.
Não é um dilema simples de resolver. Se esse for o caminho escolhido, é necessário tentar conciliar esse objetivo com a continuidade da abertura do mercado.
Toda cautela é necessária para não prejudicar os progressos que foram duramente conquistados pela sociedade brasileira até agora. Infelizmente, já se percebe representantes da administração pública federal com dúvidas sobre qual será a política do novo governo para o mercado de gás natural brasileiro, o que acaba emperrando relevantes decisões administrativas.
Exatamente por isso, seria muito positivo que houvesse, tão logo quanto possível, uma definição clara do novo governo federal em favor da continuidade da abertura do mercado de gás natural brasileiro.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
José Roberto Faveret Cavalcanti sócio fundador do escritório Faveret Tepedino Londres & Fraga Advogados.